O coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) aposta em mudanças na correlação de forças do continente americano em 2021. “Já começaram a soprar os ventos favoráveis dos Andes”, disse o economista de formação em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
A entrevista é de Caroline Oliveira, publicada por Brasil de Fato, 24-12-2020.
“Vamos ter eleições em fevereiro no Equador, depois no Peru e depois no Chile. As forças progressistas vão ganhar essas três eleições, e isso vai então alterar a correlação de forças na América Latina. Praticamente vai ficar apenas o Brasil como um governo direitista”, explicou Stedile.
“Aqui para o Brasil, a correlação de forças a gente muda com a luta de classes”, receitou. “Estou confiante que assim que conseguirmos universalizar o acesso à vacina, isso vai nos dando capacidade e espaço para mobilizar, fazer lutas de massas, alterar a correlação de forças.”
Quando Stedile fala em alterar a correlação de forças, pensa em abrir caminhos para a Reforma Agrária Popular, o projeto de país do MST. O ano de 2020, porém, foi de ações contundentes contra a luta pela terra no campo brasileiro.
Entre outros eventos, o período ficou marcado pelo despejo violento de 56 horas de duração no acampamento Quilombo Campo Grande, no Sul de Minas Gerais, que ficou para a história como o mais longo do século 21 no Brasil.
Também em 2020, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) negou o auxílio emergencial a agricultores familiares durante a pandemia de covid-19. A este cenário, somou-se ainda o aumento da violência no campo, de acordo com números da Comissão Pastoral da Terra (CPT): um crescimento de 1.880% de ocorrências em relação a 2019.
Para Stedile, Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, são legítimos representantes do “latifúndio atrasado” – “que só acumula se apropriando dos bens da natureza” –, mas, em compensação, entregou seu ministério da Agricultura para o agronegócio exportador, mais moderno mas igualmente predatório – que também agride o meio ambiente, depende do uso ostensivo de veneno e não paga impostos.
Como contraponto aos dois modelos muito bem representados pelo governo federal, Stedile explica o caminho da agroecologia e do cooperativismo. Também analisou o resultado das eleições nacionais e fez projeções para o 2021 que se aproxima. Leia, abaixo, a entrevista na íntegra:
Neste ano, houve o despejo em Quilombo Campo Grande, o auxílio emergencial negado aos trabalhadores do campo e o aumento da violência no campo, de acordo com a CPT. Como o senhor analisa 2020 diante dos retrocessos principalmente em relação aos temas ligados ao campo?
Mais do que uma nova correlação de forças adversas no Estado brasileiro, também foram tomadas uma série de medidas contra a reforma agrária e a agricultura familiar.
Na área da reforma agrária, simplesmente paralisaram. Não tem mais desapropriação. Sucatearam o departamento de obtenção de terras, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o Programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), o Programa Nacional de Habitação Rural. Também desidrataram a compra antecipada de alimentos pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
Era um programa muito generoso, porque garantia a compra de qualquer alimento dos camponeses. Também acabaram praticamente com o controle sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que determina que 30% de todos os recursos da merenda escolar devem ser adquiridos com produtos alimentícios produzidos pela agricultura familiar.
Isso tem ligação não apenas com uma política de governo, mas uma política estruturante do país, que é a questão da exportação de commodities em detrimento do desenvolvimento interno. Gostaria que o senhor falasse um pouco dessa questão da posição do Brasil no mundo como exportador de commodities e como o governo Bolsonaro intensifica esse processo.
Há no Brasil nas três últimas décadas uma disputa permanente entre três modelos de domínio da agricultura. Um é o latifúndio atrasado que só quer se apropriar das terras públicas e não produz nada. Só acumula se apropriando dos bens da natureza, daí o nome “atrasado”, porque é uma referência à acumulação primitiva de capital.
O segundo é o agronegócio, que só produz commodities para exportação, utilizando um modelo de produção que agride o meio ambiente, com o uso de sementes transgênicas e dos agrotóxicos, e expulsando a mão de obra com a mecanização, além de não pagarem nada de imposto. E o terceiro modelo é o nosso modelo da agricultura familiar camponesa, no qual nos dedicamos a produzir alimentos para o mercado interno.
Esses três modelos se enfrentam cotidianamente, porque são contraditórios entre si. Agora, no atual governo neofascista do capitão, adquiriram mais força no Estado brasileiro o modelo, sobretudo, do latifúndio, representado no governo por Ricardo Salles e Nabhan Garcia, que passaram a boiada.
O modelo do agronegócio é da natureza do capitalismo e por isso está presente na América Latina, na África, na Ásia, independente de governo. No caso brasileiro, vem desde Fernando Henrique Cardoso, quando emergiu o agronegócio.
O Estado brasileiro criou ainda mais condições para o agronegócio desenvolver. Ao contrário da Argentina, por exemplo, o agronegócio não paga imposto de exportação, por meio da Lei Kandir. Então, é um modelo que produz muita riqueza, porém é acumulada apenas por alguns poucos proprietários de terra. Então, a bem da verdade, o governo Bolsonaro só seguiu incentivando, entregou o Ministério da Agricultura para o agronegócio.
Mas o agronegócio passa por contradições dentro do governo Bolsonaro quando este entra em conflito com a China, grande importadora de commodities brasileiras, certo?
Esse mesmo agronegócio está começando a enfrentar contradições do próprio governo Bolsonaro. Primeiro nos ataques ideológicos que o governo Bolsonaro tem feito contra a China. Ora, a China compra aproximadamente 60% das commodities agrícolas brasileiras. É uma burrice comprar briga com a China. Então a ministra Tereza Cristina vive apagando incêndios dessa contradição interna.
A segunda contradição é com a Europa, que está cada vez mais limitando o uso de agrotóxico e colocando mais condicionantes, sobretudo para as nossas frutas exportadas que têm muito veneno. Também vai colocar condicionantes relacionadas à destruição da Amazônia, do nosso Pantanal. Isso tudo vai afetar o mercado externo do agronegócio, de maneira que eles têm muitos problemas aí pela frente.
Diante deste cenário, reforma agrária, agroecologia e agricultura são uma solução?
Uma solução no campo, mas não resolve todos os problemas nacionais. Primeiro, os nossos territórios devem ser utilizados fundamentalmente para produzir alimentos para o nosso povo, não para o mercado externo. E não qualquer alimento, precisa ser alimento saudável, sem agrotóxico. A forma de produzir esses alimentos é a agroecologia.
Muitos dizem que o mercado interno do Brasil é pequeno. É pequeno porque o povo não tem trabalho, não tem renda. Se houver renda para o povo comer queijo e iogurte, vai faltar vaca.
Nós devemos fazer um grande programa de agroindústrias, na forma cooperativada dos camponeses. Cada município deve ter várias agroindústrias para beneficiar o leite, as frutas e os alimentos em geral. Na forma cooperativa, aquele valor agregado não vai para a Nestlè, não vai para as multinacionais, vai para o povo que mora lá, e a cooperativa gera mais emprego.
Além da proteção da biodiversidade, das águas e do meio ambiente, completaria, então, esse programa agrário com amplo programa de educação para atingir toda a população que vive no meio rural. Nós temos milhões de analfabetos adultos, trabalhadores, cidadãos que não têm o direito de conhecer as letras. Nós temos de criar mecanismos da nossa juventude entrar na universidade. Todo mundo tem as suas vocações e tem direito ao ensino superior.
Diante desse cenário da nova correlação de forças que o senhor chama de “adversas” dentro do governo Bolsonaro e de um programa de desenvolvimento nacional oposto ao implementado atualmente, quais são os desafios colocados na mesa para a esquerda?
Primeiro, o capitalismo já está nos seus estertores, não consegue mais resolver os problemas da humanidade. Ao contrário, gera cada vez mais desigualdade social. Qual é o cenário que nós temos pela frente? Ter essa leitura mais estruturante e histórica de que nós estamos em uma fase de profunda crise do capitalismo, do modo de produção, é uma crise sistêmica. E, portanto, vai ser prolongada, não vai terminar com a vacina.
Ao contrário, tende a se aprofundar na sua natureza econômica, na desigualdade social, nos crimes ambientais cometidos pelas empresas, na crise política que está relacionada com a natureza do Estado burguês e, inclusive, nos valores que o capitalismo prega que são o consumismo e o individualismo.
Essa crise que estou descrevendo percorre o mundo. Aqui no Brasil nós temos o agravante de ter um governo neofascista, porém também está com os dias contados, porque não tem projeto de país, não tem base social suficiente e não criou uma hegemonia na sociedade. Hegemonia se cria com ideias e propostas.
As próprias eleições municipais revelaram de como ele não tem mais ressonância nas suas propostas. O ideário necessário é a troca de governo. Porém, para termos a saída do governo, teríamos de ter um amplo apoio de setores da burguesia que ainda querem se locupletar com as políticas públicas de Paulo Guedes.
Por último, temos desafios organizativos como esquerda, no sentido amplo. Primeiro lutar para que a vacina venha logo, via SUS, e com isso criam-se as condições para que a classe trabalhadora volte a fazer luta de massa em defesa de seus direitos.
Segundo desafio: construir uma ampla aliança social com uma pauta em comum, que começa pela vacina já, mas também pela luta pelo emprego e pela recomposição do auxílio de emergência, porque essas são as duas condições que garantem a vida.
Terceiro, o direito à alimentação. Parte da nossa população se alimenta aquém das necessidades nutricionais, de maneira que nós temos que lutar pelo direito à alimentação saudável. Isso nós podemos conseguir com programas de apoio à agricultura familiar, de cestas básicas, hortas urbanas, etc.
A quarta necessidade que nós temos é tributar os ricos, as fortunas, herança, movimentação financeira. Não sei porque a esquerda parou de falar nisso. E, finalmente, nós temos de lutar contra as privatizações que o governo já colocou na agenda: privatização da Eletrobras, Correios e Caixa.
O senhor comentou sobre as eleições municipais. Seriam as eleições municipais um prelúdio de 2022?
As eleições municipais sempre são importantes, mas são marcadas, como dizem os mexicanos, pela idiossincrasia local. Aí não está em jogo ideologia, estão em jogo cenários muito locais, que são influenciados pelos personagens que são candidatos, pela administração anterior. Então o resultado das eleições nos municípios é dos municípios. Nós não podemos tirar lições que nacionalizem. Se vocês quiserem uma prova da história do Brasil, na década de 80, o PMDB controlava praticamente todos os governadores do estado e 80% das prefeituras. Lançou Ulysses Guimarães para candidato à Presidência e fez 3% dos votos.
É claro que em algumas capitais, houve também uma luta ideológica partidária. Mas em todas, o grande derrotado foi o bolsonarismo. E aí existem lições que nós devemos aproveitar. Nós devemos ter uma interlocução imediata com os prefeitos e vereadores que vão assumir dia 1º de janeiro, para vermos como no território de uma Prefeitura nós podemos tomar políticas públicas que ajudem a melhorar as condições de vida do povo. Acho importante que a gente utilize o espaço excepcional da Prefeitura para organizar o povo, ter mais participação popular na política municipal e conseguir resistência ativa de massas.
Nós temos que nos preparar para a luta de massa, formar militantes e discutir um novo programa popular para o Brasil, para que as eleições de 2022 não sejam apenas um debate de siglas partidárias. Mas que seja sobretudo um debate de que projeto nós precisamos para o Brasil.
O que esperar de 2021 tanto no âmbito nacional quanto no âmbito da América Latina pensando aí na correlação de forças e na pandemia?
Em resumo, 2021 vai ser um ano da vacina, de muita luta social e de mudanças. Pode escrever isso. Agora, em que cenário isso vai se desenrolar?
Começando pela América Latina, já começaram a soprar os ventos favoráveis dos Andes. As eleições na Argentina e Bolívia e o aprofundamento da crise no Chile, Peru, Equador e Colômbia já estão revelando que vamos ter mudanças no caminho do progresso da esquerda.
Vamos ter eleições em fevereiro no Equador, depois no Peru e depois no Chile. As forças progressistas vão ganhar essas três eleições, e isso vai então alterar a correlação de forças na América Latina. Praticamente vai ficar apenas o Brasil como um governo direitista, e a Colômbia, que enfrenta muitos problemas sociais.
Acredito também que o governo Biden dos EUA não é a mesma coisa que o Trump, ainda que ele represente os interesses do capital. Mas o Biden vai ter uma outra política. Não é que seja a nosso favor, mas de maior convivência e democracia. Eles não podem tratar a América Latina desse jeito que o Trump e o “Seu Pompeo” trataram.
Aqui para o Brasil, a correlação de forças a gente muda com a luta de classes. Nossa obrigação é organizar a classe trabalhadora, estimular a luta de massa, para que a correlação de forças também aqui no Brasil se altere.
Estou confiante que assim que conseguirmos universalizar o acesso à vacina, isso vai nos dando capacidade e espaço para mobilizar, fazer luta de massas, alterar a correlação de forças e ir pavimentando um caminho que represente um novo projeto para o nosso país.