As eleições legislativas são um passo importante na recuperação democrática das instituições.
O artigo é de Carlos Ron¹ e Vijay Prashad², publicado por Brasil de Fato³, 03-12-2020. A tradução é de Luiza Mançano.
No dia 6 de dezembro, o povo venezuelano votará por uma nova Assembleia Nacional. Em geral, não haveria nada de incomum nisso, nem seria de interesse midiático fora da Venezuela. Desde a eleição de Hugo Chávez à presidência de 1988, o povo venezuelano se acostumou a ter mais de uma eleição nacional por ano (esta eleição legislativa é a 25ª em 21 anos) – eleições presidenciais e legislativas e referendos para fortalecer a Constituição de 1999. Superficialmente, esta seria apenas mais uma destas eleições que tem servido para aprofundar o significado da democracia na Venezuela.
Mas nestes dias até a celebração das eleições é uma disputa entre o povo venezuelano e o governo dos Estados Unidos. Desde que Chávez se tornou presidente, o governo dos Estados Unidos e seus aliados tentam desestabilizar o governo da Venezuela, através, inclusive, de esforços diretos para mudar o regime. Quando ficou claro que Chávez e a Revolução Bolivariana, que ele dirigia, tinham um forte apoio popular e não podiam ser derrotados nas urnas, o governo dos Estados Unidos e seus aliados pressionaram para deslegitimar a soberania política da Venezuela.
Intensos desacordos marcam a arena política venezuelana, na qual a oligarquia mantém suas próprias plataformas políticas e continua tentando minar e derrotar a Revolução Bolivariana. Estas forças – agora chamadas de oposição – disputaram eleições desde 1998, com alguns avanços, sem dúvida, mas sem conseguir se impor. Em 2015, por exemplo, a oposição ganhou a maioria na eleição à Assembleia Nacional e controlou a Casa durante os últimos cinco anos. O próprio fato de que a oposição tenha ganhado em 2015 demonstra que existe um sistema eleitoral robusto no país. Naquele momento, não houve nenhuma queixa de fraude.
Uma oposição “Made in Washington” (feita em Washington)
Ao invés de assumir seu dever constitucional de governar junto com o presidente Nicolás Maduro, setores da oposição decidiram operar como uma ala da Embaixada dos Estados Unidos em Caracas. Um dos deputados, Juan Guaidó (que tinha conquistado sua cadeira no estado de Vargas), permitiu ser transformado em instrumento de uma tentativa de golpe político estadunidense após as eleições presidenciais de 2018. A oposição à Revolução Bolivariana sempre foi dividida e não conseguiu encontrar uma unidade em seu propósito. Uma das divisões mais importantes diz respeito a subordinação ou não ao governo dos Estados Unidos. Figuras como Guaidó estavam bastante felizes de ser um instrumento de Donald Trump e Mike Pompeo, enquanto outros deixaram claro que esta era uma oposição antipatriota e traidora inclusive. Desde 2015, a oposição enfrentou uma crise existencial em torno desta questão do nível de apoio dos Estados Unidos ao processo político interno. Toda a influência de Guaidó dependeu do apoio de Washington, mais do que de seus próprios eleitores ou da oposição.
A Constituição venezuelana exige que a eleição da Assembleia Nacional ocorra antes de 5 de janeiro de 2021, quando o novo grupo de legisladores deve prestar juramento. Por esse motivo que a eleição é realizada em 6 de dezembro. Alguns setores da oposição que dependem do poder de Washington, como o bando de Guaidó, decidiu desde o começo boicotar as eleições alegando que seriam fraudulentas. Não ofereceram evidências para estas afirmações; os meios de comunicação do Atlântico Norte não exigem provas para repeti-las, tampouco abordam o assunto da eleição da Assembleia Nacional de 2015 ter tido um resultado positivo para a oposição. Ao invés de disputar o poder através dos meios democráticos, isto é, através das eleições e da legislação vigente, a oposição ligada a Guaidó busca tomar o poder por meios não democráticos. Ganhar as eleições parece menos importante do que deslegitimar o processo eleitoral e democrático.
Interferência dos EUA nas eleições
O governo dos Estados Unidos, com o apoio bipartidário, tanto de republicanos quanto de democratas, interveio ativamente nas eleições da Assembleia Nacional de 2020 na Venezuela. Em setembro, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos sancionou quatro funcionários do governo venezuelano: Reinaldo Enrique Muñoz Pedroza (Procurador-geral), David Eugenio De Lima Salas (um ex governador) y dos funcionários do Conselho Nacional Eleitoral: Indira Maira Alfonzo Izaguirre e José Luis Gutiérrez Parra. Indira Alfonzo é a presidenta do Conselho Nacional Eleitoral e uma ex-juíza muito respeitada com vínculos de longa data com a oposição. O governo dos EUA afirmou, sem apresentar provas, que estes funcionários faziam parte de um “plano de interferência eleitoral para evitar a realização de eleições parlamentares livres e justas em dezembro de 2020”. A interferência do governo dos Estados Unidos continuou no final daquele mês nas eleições; quando Departamento de Estado dos EUA impôs novas sanções pela “cumplicidade” nas eleições.
Os políticos da oposição que enfrentam esta pressão de Washington também enfrentam uma base descontente na Venezuela, que luta contra esta política de abstenção e boicote. Muitos dos membros do partido destes grupos de oposição cobram de seus líderes a participação nas eleições. Eles estão cansados da estratégia de desgaste de Guaidó e da subordinação de Guaidó ao Departamento dos Estados Unidos.
Por esse motivo, são mais de 14 mil candidatos de 107 organizações políticas, entre as quais 98 se identificam como partidos de oposição. Eles disputarão as 277 cadeiras (anteriormente, eram 165, mas o número aumentou como reflexo do crescimento da população e da capacidade de participação democrática).
A Assembleia Nacional da Venezuela está estagnada desde que Washington a transformou num instrumento para a mudança de regime. Agora, com esta eleição, espera-se que o processo legislativo seja retomado. Uma nova Assembleia Nacional poderá nomear funcionários importantes e discutir uma legislação para abordar a pandemia e se tornar um lugar de diálogo saudável entre o governo e a oposição, sequestrada por Washington e por Guaidó. Mais do que qualquer outra coisa, esta Assembleia Nacional deveria representar um desafio legal para os governos e bancos da Europa e dos Estados Unidos, que congelaram pelo menos US$ 6 bilhões de fundos venezuelanos e confiscaram ativos como a Citgo, pois já não contariam com o suposto governo interino de Guaidó como desculpa para suas ações.
A Venezuela vence só por realizar as eleições. Esse é o resultado final.
Referências
[1] Carlos Ron é vice-ministro de Relações Exteriores da Venezuela para a América do Norte e presidente do Instituto Simón Bolívar para a Paz e a Solidariedade entre os Povos.
[2] Vijay Prashad é historiador, editor e jornalista indiano. É redator parceiro e correspondente-chefe do Globetrotter. Editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social. É membro sênior não residente do Instituto de Estudos Financeiros de Chongyang, Universidade Renmin, da China. Escreveu mais de 20 livros. Seu último livro é Balas de Washington, com introdução de Evo Morales, publicado no Brasil pela Expressão Popular.
[3] Este artigo foi elaborado por Globetrotter.