A América Latina, assim como outras regiões do mundo, será afetada negativamente pelo novo coronavírus (Covid-19). A previsão diante do atual cenário para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) é uma contração de -1,8% do Produto Interno Bruto (PIB) regional. Com essa previsão se confirmando, a taxa de desemprego aumentará em dez pontos percentuais, passando dos atuais 8,4% para 18,4%. Isso levaria o número de pessoas em situação de pobreza a subir de 185 para 220 milhões e as pessoas em extrema pobreza aumentar de 67 para 90 milhões.

O economista Guilherme Santos Mello lembra que antes da chegada do novo coronavírus, a região estava reduzindo seu ritmo de crescimento desde 2014 devido à queda no preço do petróleo e da desaceleração global, além das instabilidades políticas que ocorrem desde 2013. “Golpes de Estado, não golpes clássicos necessariamente, mas golpes parlamentares. O mais recente agora na Bolívia por milícias e policiais militares com o exército. Tudo isso somado, levou ao cenário negativo para América Latina nos últimos anos”, lembra.

Guilherme também pensa que o novo coronavírus será bastante negativo, em particular nos países que desenvolvem focos, como é o caso Brasil, Chile e Equador. O economista entende que o papel do Estado vai ser central na coordenação e indução da retomada do crescimento. “Para isso, é preciso ter um Estado ativo, forte, capaz de coordenar e planejar. Ao contrário da visão liberal e dos defensores da austeridade, que apostam no Estado mínimo e no setor privado”, afirma.

O receio de Mello é que a América Latina sofra uma pressão muito grande pelo retorno da austeridade após a crise do novo coronavírus. “Isso tem fracassado do ponto de vista social e econômico. Não tem produzido crescimento, mas aumentado a concentração de renda e a pobreza. Talvez o novo coronavírus seja um ponto de virada, pois tem a potência de reverter e mostrar o evidente fracasso do neoliberalismo”, finaliza.

Guilherme Santos Mello (Foto: CNB)

Guilherme Santos Mello em entrevista ao Observatório da América Latina também aborda o tema da desigualdade social, avalia os governos de esquerda e direita, e os limites das políticas econômicas implementadas. Guilherme é economista, professor de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura da UNICAMP. 

Confira a entrevista completa.

Por que a América Latina é a região mais desigual do planeta?

Acredito que tem vários motivos que explicam a desigualdade. Se eu fosse um liberal, apontaria muito para questão da educação, mas não é o caso. O acesso à educação é evidentemente um dos motivos, porém ela está condicionada a vários determinantes históricos. No caso brasileiro, por exemplo, a questão da escravidão é muito marcante, o que não é muito presente nos países latino-americanos, apesar de eles terem a questão indígena mais forte.

Penso que a questão da desigualdade permanece ligada à forma que as elites locais planejaram e pensaram as estratégias de desenvolvimento dos países. As elites tem características bastantes conservadoras em vários aspectos, não só políticos e de costumes, mas também econômicos e sociais. Assim como subalternas aos interesses internacionais e absolutamente ligadas a uma tentativa de emular os modelos estrangeiros.

Além das razões históricas, estruturais e da presença desse tipo de elite, que limita muito a capacidade dos países latino-americanos de superarem os dilemas da desigualdade. Acredito que os modelos de desenvolvimento econômico tendem a preservar essas diferenças.

Mesmo quando se construiu o modelo de industrialização em alguns países – o modelo do Brasil em 1964 talvez seja um bom exemplo -, acabaram optando em alguns momentos chave da história por uma estratégia de crescimento econômico com aumento da desigualdade social. O modelo brasileiro foi combinado com concentração de renda pessoal, funcional e regional. Foi uma opção da sociedade brasileira, obviamente uma imposição militar, mas foi o que a sociedade caminhou naquele momento, que têm evidentes consequências e o Brasil traz essas marcas até hoje.

Penso também que a questão da desigualdade permanece ligada à forma que as elites locais planejaram e pensaram as estratégias de desenvolvimento dos países os países latino-americanos.

Os governos progressistas ou de esquerda avançaram no combate às desigualdades como deveriam? Quais foram os limites?

Os governos progressistas, principalmente da década de 2000, tentaram dentro de algumas limitações muito claras construir uma estratégia de desenvolvimento com base no mercado interno e na distribuição de renda e de combate à pobreza. Se valeram de um momento internacional positivo e com menos instabilidade econômica. O crescimento foi puxado pela melhora da renda, crescimento dos salários, aumento do consumo interno. Todos esses fatores possibilitaram uma certa retomada do PIB.

No meio do caminho, o cenário externo se transformou, ficou muito mais negativo e, ao mesmo tempo, encontrou-se limites internos a estratégia, sejam políticos, sociais ou estruturais. A estrutura produtiva não se renovou, sendo um grande problema para a América Latina. Conseguiu-se distribuir renda, mas sem ganho de produtividade e não reindustrializou a economia dos países. Por mais que eles tivessem crescido, aumentado o consumo e a demanda interna, a estrutura produtiva continuou muito fragilizada. Isso é uma própria consequência da nova divisão internacional do trabalho, das novas tecnologias, da incapacidade de internacionalizar tecnologia e financiamento.

Os governos progressistas apostaram numa estratégia mais distributivista de combate às desigualdades, a pobreza e a miséria. No entanto, encontraram esses limites, não conseguiram se livrar ou superar esses limites, tanto que foram caindo um a um seja por golpes parlamentares, golpes militares ou do ponto de vista eleitoral como na Argentina, Chile e Uruguai.

A estratégia se mostrou importante e bem-sucedida naquele momento, mas insuficiente do ponto de vista mais estratégico, uma vez que se mostrou incapaz na dimensão produtiva promover a renovação e modernização da nossa estrutura.

Os governos progressistas tentaram dentro de algumas limitações muito claras construir uma estratégia de desenvolvimento com base no mercado interno e na distribuição de renda e ao combate à pobreza.

O “modelo extrativista” está esgotado?

O extrativismo nunca chegou a ser um modelo. Eu diria que o extrativismo é o que a realidade impôs para a região. De fato, ele está esgotado. Já está mais que provado, que principalmente para países de dimensões do tamanho da Argentina, Brasil e México, ele é insuficiente para contemplar as necessidades econômicas e sociais. Além dos efeitos danosos ao meio ambiente, não que a indústria não tenha.

O extrativismo, evidentemente, é uma estratégia para produção de commodities, de grandes plantações, fazendas e propriedades rurais ou mesmo de exploração de commodities minerais. Toda essa estratégia não permite um espraiamento dos ganhos de produtividade pelo conjunto da sociedade. Mantém uma massa de trabalhadores pobres, enquanto um pequeno grupo de proprietários ricos.

A América Latina tem um cenário que acaba empurrando para uma estratégia extrativista, mas ela de fato não é uma forma de desenvolvimento. O extrativismo é uma imposição da realidade sobre as outras estratégias que não conseguiram avançar. A região que conseguiu mais recentemente superar e se inserir na divisão internacional do trabalho foi a Ásia.

O extrativismo nunca chegou a ser um modelo. Eu diria que o extrativismo é o que a realidade impôs para a América Latina.

A América Latina perdeu o mote da política industrial e da inovação?

Boa parte da América Latina, na década de 1940-50, começou uma tentativa de industrialização. Alguns países mais do que outros e diversos países abandonaram no meio do caminho, mas houve uma tentativa de modernização da estrutura produtiva. O problema é que existem barreiras enormes para superar os limites da industrialização retardatária.

Na região, talvez os países mais bem-sucedidos fossem a Argentina, Brasil e México, em grande parte pelas escalas populacionais e do mercado interno. Mesmo assim, esses países perderam muito, a Argentina e o Brasil passarem pelo processo de desindustrialização precoce. O México apesar de ter aparentemente muita indústria maquiladora, ainda assim, não possui tanto desenvolvimento tecnológico.

A principal questão é que a partir da década de 1990, com o surgimento do neoliberalismo na América Latina, há uma aposta que a modernização produtiva viria de fora, não do Estado desenvolvimentista. Essa aposta fracassou ainda na década de 1990 com muitas crises e baixo crescimento.

A partir da década de 2000, entrou outra estratégia, que é uma aposta nos mercados internos, em particular na Argentina e no Brasil. Houve um pouco mais de participação do Estado. Porém, isso se mostrou limitado porque, assim que o panorama externo se deteriorou, o cenário político e social também. Isso limita a Estado de atuação, que estava atuando e começando a construir os instrumentos.

A América Latina se mostra aparentemente incapaz de construir os instrumentos de superação do subdesenvolvimento, ou seja, de internalização da ciência, pesquisa e tecnologia. Temos ainda um mercado de crédito e de capitais pouco desenvolvimento e uma dependência externa muito grande. O caso da Argentina é clássico, o país dolarizou praticamente a economia. No caso da dependência tecnológica, a América Latina não conseguiu superar.

O problema é que existe barreiras enormes para superar os limites da industrialização retardatária.

O período de 2014-2020 será o de menor crescimento para as economias da América Latina nas últimas sete décadas. Quais fatores são responsáveis por esse cenário macroeconômico?

Existe uma série de fatores, eu destacaria em primeiro lugar, a partir do final de 2014, uma queda importante nos preços do petróleo. Isso afeta países altamente  dependentes, como o Brasil e a Venezuela, havendo uma deterioração nos termos de troca. Também uma desaceleração global que começa a ganhar força a partir de 2015 e 2016, que também vai aumentando a concorrência internacional. Como temos estruturas produtivas mais precárias e tecnologicamente menos avançadas, a América Latina vai perdendo espaço na divisão internacional do trabalho. A região começa um processo de reprimarização, em um momento de deterioração dos termos de troca. Esses fatores internacionais acabam afetando conjunto grande dos países da América Latina.

Acrescentaria também uma dificuldade muito grande de preservar os ganhos da década anterior dos anos 2000 até 2013-2014. Foram ganhos substantivos no combate à pobreza e algum nível de distribuição. Isso com a desaceleração econômica e com as dificuldades internacionais, vai agravando os conflitos sociais e políticos, a desaceleração do crescimento e a deterioração da estrutura produtiva.

É claro que existem outros problemas, por exemplo, muitas instabilidades políticas desde 2013-2014, com golpes de Estado, não golpes clássicos necessariamente, mas golpes parlamentares. O mais recente foi na Bolívia, através de milícias e policiais militares com o exército. Tudo isso somado, leva ao cenário negativo para América Latina nos últimos anos.

Existe uma série de fatores, mas eu destacaria em primeiro lugar, a partir do final de 2014, uma queda importante nos preços do petróleo.

Qual será o impacto social e econômico do Covid-19 na região?

O impacto vai ser bastante negativo do ponto de visto do crescimento e na vida das pessoas. Os países que não tomarem as medidas adequadas como isolamento social, saúde pública e leitos vão ter perda de vidas muito numerosas. As empresas que sobreviverem a essa crise, pois muitas vão quebrar e saírem endividadas, terão menores receitas e faturamentos.

Mais do que isso, o meu temor é após a crise causada pela Covid-19. A América Latina é um clássico exemplo de que vai sofrer uma pressão muito grande pelo retorno da austeridade. Vai ter uma pressão de investidores internacionais quando dado o aumento da dívida e do déficit público pelo retorno da austeridade. São países com moedas fracas, periféricas e que já vinham com dificuldade crescimento e estabilidade macroeconômica e político-social. Vai ser um enorme erro se os governos aderirem essa agenda.

A América Latina é um clássico exemplo que vai sofrer uma pressão muito grande pelo retorno da austeridade.

Como a pandemia mostra a importância do Estado?

O impacto do novo coronavírus será bastante negativo na região, em particular em países que desenvolvem focos, como é o caso Brasil. Como destacado na pergunta anterior, a tragédia será pior também nos países que não tiverem sistema de saúde pública e Estado presente. O novo coronavírus mostra a importância decisiva do Estado como um coordenador de ações, seja no campo da saúde pública, das instituições sociais, mas também da própria economia.

O papel do Estado vai ser central na coordenação e indução da retomada do crescimento. Para isso é preciso ter um Estado ativo, forte, capaz de coordenar e planejar. Ao contrário da visão liberal e dos defensores da austeridade, que apostam no Estado mínimo e no setor privado, em particular no internacional, que vai estar se aproveitando das oportunidades de reconstrução dos países centrais, não dos países da América Latina.

Nesse momento, o Estado terá que discutir temas como reconversão produtiva, ou seja, fábricas e empresas produzirem produtos que enfrentem a crise. O ideal seria os países não dependessem de insumos, mas a Argentina, Brasil e México se industrializaram. Isso mostra o lado negativo da desindustrialização, da perda de densidade produtiva e da dependência externa.

novo coronavírus pode servir de lição para maior cooperação regional, ampliação do papel do Estado, coordenação e indução do crescimento, fortalecimento das instituições e maior importância da saúde pública. Do ponto de vista meramente econômico, essa crise terá impacto muito negativo, mas possibilita uma reordenação da estratégia. Embora não vejo isto necessariamente como cenário provável, dado o alinhamento político atual da América Latina.

O papel do Estado vai ser central na coordenação e indução da retomada do crescimento.

Como você avalia os governos de direita e centro-direita da região?

Os governos de direita e centro-direita da região eu avalio como um passo atrás. Diante da dificuldade dos governos de centro-esquerda em manterem a estratégia adotada por limites internos e externos, a direita e a centro-direita voltaram com força apontando erros, equívocos, crimes, verdadeiros ou inventados do campo progressista.

Na America Latina, o empresariado e a elite econômica dos países abandonaram qualquer pretensão a uma estratégia nacional. Diante do enfraquecimento e do eventual fracasso da estratégia desenvolvimentista com base em distribuição de renda, essas elites se voltaram para sua própria autopreservação.

O grande tema das elites é como preservar a rentabilidade do capital que elas possuem mesmo no cenário de baixa produtividade e deterioração da estrutura produtiva. Todo o desmonte do Estado, da legislação trabalhista e social está ligada à isso. É uma tentativa de tentar retomar a rentabilidade do capital da forma mais primitiva que existe. A única forma de fazer isso é através do aumento da exploração do trabalho e a redução dos salários.

Isso tem impacto na desestruturação dos mercados domésticos, as economias passam a crescer menos, a arrecadação diminuiu e os problemas fiscais começam a aparecer. Do ponto de vista do capital e das elites dominantes, isso é um resultado que preserva os seus interesses mesmo no cenário bem menos próspero.

O crescimento é muito importante para o trabalhador, claro que para a elite é desejável porque amplia sua empresa, mas o vital é preservar as suas taxas de rentabilidade do capital. Se os empresários conseguirem preservar isso, mesmo em cenário de baixo crescimento, não é necessariamente o fim do mundo para um capitalista.

É uma estratégia neoliberal, sem presença do Estado, muito conservadora, inclusive nos costumes, e que tem como característica o desejo de desconstrução das regulações que limitavam a rentabilidade do capital. Isso tem fracassado do ponto de vista social e econômico. Não tem produzido crescimento, mas aumentando a concentração de renda e a pobreza. Ainda encontra alguma sustentação política, não sei por quanto tempo, e tem avançado na sua agenda.

Talvez o novo coronavírus seja um ponto de virada, pois tem a potência de reverter e mostrar o evidente fracasso do neoliberalismo. Neste caso, eu não minimizaria a possibilidade dessa elite e desses governos de centro-direita serem capaz de sobreviverem ao novo coronavírus e tentar voltar a adotar a sua estratégia neoliberal de desmonte do Estado com políticas de austeridade depois da crise. Não penso que isso está dado. Temos que analisar com calma o que ainda vai acontecer ao longo da crise do novo coronavírus.

Talvez o novo coronavírus seja um ponto de virada, pois tem a potencia de reverter e mostrar o evidente fracasso do neoliberalismo.

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