A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) atingiu a América Latina com força. O primeiro caso foi registrado no dia 27 de fevereiro e na última quarta-feira (01/04) a região chegou a mais de 20 mil casos e 766 mortes confirmadas. Desde o início, diversas ações foram tomadas pelos chefes de estado, principalmente no sentido de isolamento social e até mesmo fechamento de fronteiras.
Para o cientista político, Bruno Lima Rocha, responder com medidas de combate ao novo coronavírus orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é um procedimento correto. Sobre o impacto do fechamento de fronteiras ele afirma que é preciso “uma coordenação dos poderes políticos em ambas as áreas de fronteiras e, necessariamente, coordenação política e engajamento social forte”.
Na maioria dos países foram realizadas declarações de estado de emergência logo no início da crise. No entanto, o Brasil demorou para levar a sério a crise sanitária que estava se instaurando, chegando até a subestimar a pandemia e os seus impactos. O fato é que 60 milhões de brasileiros trabalham na informalidade e, para além dos sistemas de saúde, o governo precisa pensar em como reduzir os danos nas populações mais vulneráveis.
Por isso, Bruno dá enfase na revogação da Emenda Constitucional 95. Para ele “a sociedade brasileira precisa superar as falácias do teto dos gastos. Com Jair Bolsonaro ou sem Jair Bolsonaro“, destaca. Sem essa mudança de paradigma, o cientista político acredita que não existe a possibilidade de sair da recessão que virá do encolhimento da economia.
O Observatório da América Latina entrevistou Bruno Lima Rocha, cientista político, professor da Unisinos de relações internacionais e jornalismo.
Confira a entrevista completa.
Como você avalia as medidas tomadas pelos países da América Latina na questão do coronavírus?
O que é mais prudente costuma estar abalizado pela OMS. Então, se a OMS recomendou o maior volume possível de distanciamento social e se a União Européia está restringindo a movimentação de cidadãos comunitários, o Brasil começando esse isolamento mais cedo – respondendo isto no dia 17/03 – me parece que o fechamento de fronteiras está sendo uma medida considerável.
No entanto, vejo como um problema grande o governo Bolsonaro anunciar que fecharia a fronteira com a Venezuela de maneira parcial e só com a Venezuela. Parece que é uma medida de impacto publicitário, de propaganda política para a própria base bolsonarista.
O que é mais prudente costuma estar abalizado pela OMS.
Quais os impactos, para além da questão sanitária, ao fechar as fronteiras?
Isto é bem complexo. Por exemplo, analisando a União Europeia, existem circuitos econômicos muito integrados. Há um problema seríssimo na América Latina de importações de bens essenciais e exportação de mineral primário, mas existe comércio entre os nossos países, como por exemplo Brasil e Argentina.
O fechamento de fronteiras deveria implicar em algo parecido com aquilo que está sendo dito na União Européia como “corredores verde”, para manter o fluxo de trocas capitalista entre os países. Mas nós também sabemos que as fronteiras terrestres são muito vivas, como, por exemplo, aqui no Rio Grande do Sul, com Rivera e Livramento, Fronteira da Paz, entre outros.
Para as famílias que são integradas o impacto seria de não permitir a circulação de grupos familiares de fronteiras distintas e isto seria um absurdo. Estas ações deveriam implicar em uma coordenação dos poderes políticos em ambas as áreas de fronteiras e, necessariamente, em uma coordenação política forte e engajamento social forte também.
Como funcionariam as questões de cooperação de fronteiras na prática? Existe logística suficiente para atender as demandas desses fechamentos?
As relações de fronteiras na América Latina se dão muito na rivalidade entre os estados e também nas capacidades dos governos nacionais e das sociedades locais. Isso varia muito de fronteira para fronteira, mas, em geral, o fechamento de fronteiras no nosso continente é algo que sempre vai ser complicado. Por exemplo, a fronteira de Arica no Chile e Tacna no Peru, que é muito viva e outras fronteiras que ligam o Peru ao Equador e por aí vai.
No caso de de El Paso no Texas e Ciudad Juarez em Chihuahua, no México, por exemplo. Uma parcela importante de El Paso vai a Juarez fazer tratamento médico e dentário, que é muito mais barato e melhor. O mesmo ocorre em Arica, Tacna, que as pessoas saem para fazer tratamento médico e odontológico no Peru. Tem muita integração, econômica, de famílias, de estudo e etc. O fechamento de fronteiras deveria ter no mínimo status especial para moradores de ambos os lados de uma fronteira contígua.
O enfraquecimento do Mercosul e da Unasul dificulta na cooperação do combate a crise de coronavírus?
Eu entendo que sim. Nesse sentido, quanto mais próximos forem os nossos países, menos dificuldades passaremos em todos os níveis da existência humana. Sei que parece geral demais, mas é verdade.
Por este ângulo, o Brasil importa 80% dos princípios ativos de medicamentos e poderíamos romper o bloqueio econômico para comprar da indústria farmacêutica cubana, que é melhor e mais barato. Outra dificuldade seríssima é a relação com os médicos cubanos, que o Bolsonaro de maneira absurda terminou com o convênio e agora os quer de volta. São essas situações concretas que podem dificultar uma cooperação no combate ao novo coronavírus.
Por exemplo: mais de três mil brasileiros estão detidos no Peru. Por um decreto do presidente Martín Vizcarra ninguém pode sair do pais e as companhias áreas, que são privadas, não querem voar para lá com tripulação brasileira. Deveria-se fazer uma ponte aérea, com o aval do governo peruano, para resgatar as pessoas que estão lá. Isso não interessa às companhia aéreas e ao governo. Se houver vontade de tirar estas pessoas de lá, terá que ser criado crédito suplementar para isso.
Assim, é muito importante todo tipo de cooperação no nosso continente. Quanto mais forte for entre nossos países, menos poder terão sobre nós outros países, sobretudo Estados Unidos, China e União Européia.
Quanto mais próximos forem os nossos países, menos dificuldades passaremos em todos os níveis da existência humana.
As diferenças do Brasil com países como a Argentina e a Venezuela, por exemplo, podem atrapalhar em uma cooperação conjunta dos países da região?
Pode. Por exemplo, o caso brasileiro com a Venezuela é patológico. Mas se pensarmos na relação da Colômbia com a Venezuela, é muito complicada. Uma cooperação mais direta entre Colômbia e Chile pode ser um pouco mais difícil. Tudo isto depende muito da posição e condição do chefe de estado. Nós temos, no caso brasileiro, um animador de torcida, que não tem postura de estadista – nunca teve – e na hora da crise se revela ainda pior.
Então, pode atrapalhar muito sim. No caso da Venezuela, por exemplo, o país poderia ceder médicos cubanos radicados no seu território para Roraima, mas não isto não acontece e a tensão em Roraima só faz aumentar.
Por exemplo, o caso brasileiro com a Venezuela é patológico.
Quais os impactos da ausência do Jair Bolsonaro na teleconferência dos presidentes latino-americanos sobre o coronavírus?
Isto é muito sério. Narrando os fatos: o Bolsonaro vai com uma comitiva enorme para Miami, para assinar contratos e convênios que atendem aos interesses do comando sul do império dos Estados Unidos e não está presente na teleconferência dos presidentes latino-americanos. O que ele está dizendo? Que está de costas para a América Latina e, literalmente, operando, sendo e existindo como lacaio dos Estados Unidos.
Nem aquilo que presta nos Estados Unidos ele consegue reproduzir aqui, como a emissão de dinheiro, ou seja, injetar liquidez na economia através da autoridade monetária e romper com essa falácia de teto de gastos.
A ausência de Bolsonaro na conferência e as relações tensas que ele tem dentro do próprio país e do governo demonstram que o presidente – e o bolsonarismo – operam em um caos permanente, tanto dentro das nossas fronteiras como fora delas.
Está de costas para a América Latina.
Existe a possibilidade de entrarmos em uma crise político-social deixada pelos efeitos do coronavírus após a sua decaída? Se sim, como superá-los?
Quase sempre essas epidemias e pandemias geram consequências sociais muito graves. E também conseguem aumentar, de certa maneira, o grau de organização social. Isso não está nem tão longe, por exemplo, o terremoto no México em 1985, que foi praticamente o abismo do governo do Partido Revolucionário Institucional (PRI).
Tiveram que fraudar para eleger Carlos Salinas de Gortari, tiveram que matar o candidato meio reformista Luis Donaldo Colosio. Depois entraram os neoliberais do Partido de Acção Nacional (PAN), Felipe Calderón fraudou e depois o seguinte só foi eleito com o apoio dos cartéis. Ou seja, o modelo priista acabou depois que o governo não conseguiu atender, não quis atender ou de fato não atendeu às demandas sociais após um terremoto no DF. Imagina em uma pandemia dessa escala.
Quase sempre essas epidemias e pandemias geram consequências sociais muito graves.
Existem grupos sociais que serão mais atingidos pelo coronavírus e pelas ações governamentais?
Sim. Por exemplo, as 60 milhões de pessoas no Brasil que trabalham na informalidade. Sobreviver já era difícil e se não tiver uma injeção de dinheiro novo, submissão de crédito suplementar pelo artigo 167 da constituição ou acabando com esse absurdo do austericídio e da suposta austeridade – do teto de gastos – as pessoas vão passar muita dificuldade. A propagação do vírus vai ser gigantesca porque as condições sanitárias são muito menores e de moradias são precárias.
Uma outra possibilidade eu diria que não está acontecendo. Em geral, existe essa vocação de um estado mais policialesco, que toma a pobreza como alvo de repressão. Mas agora a rebelião contra o distanciamento social se dá pela manipulação de redes bolsonaristas. Então, por exemplo, no que ocorreu dia 15/03, o correto seria o aprisionamento em massa daqueles manifestantes pró-bolsonaro, algo que não vai acontecer.
60 milhões de pessoas no Brasil que trabalham na informalidade.
Gostaria de acrescentar algo mais?
Quero fazer muita ênfase nisso: se a sociedade brasileira não superar as falácias do teto dos gastos, da meta fiscal, esse absurdo chamado Falácia Fiscalista – que diz que o dinheiro tem limite, que o dinheiro de um país soberano tem limite. Se todo esse arcabouço de teorias tóxicas, como diz Yanis Varoufakis ou mentiras sistemáticas, como diz o David Graeber e um monte de arrependidos, se isso não for atirado no lixo não tem como sair da recessão que vai vir do encolhimento de uma economia.
Economia que sem o coronavírus deu o PIBinho, quase 5 reais no dólar e um Produto Interno Bruto (PIB) ridículo. Não tem o que fazer. E ai nós vamos realmente estar chancelando uma patologia social crônica. Isto tem que ser derrubado o quanto antes, seria a primeira meta mais importante. Com Bolsonaro ou sem Bolsonaro, com Paulo Guedes ou sem Paulo Guedes. De preferência sem os dois, mas se derrubar esta meta já está de bom tamanho.