A Anistia Internacional publicou o informe anual de 2019, revelando que a América Latina é o lugar mais perigoso do mundo para militantes dos direitos humanos. Durante o ano, pelo menos 210 pessoas morreram em consequência da violência no âmbito de protestos. Além disso, muitos sofrem assédio e prisões arbitrárias.

O relatório destacou que o ano passado foi marcado pela incapacidade dos Estados em canalizar o descontentamento da população e as reivindicações de seus direitos. Muito antes pelo contrário, as autoridades recorreram à representação do uso excessivo da força, incluindo o uso intencional de meios letais e outras violações dos direitos humanos. Ainda, segundo a Anistia, os governos respondem aos protestos com repressão ao invés de promover o diálogo.

O ano de 2019 também foi marcado por protestos em massa. Em muitos países as manifestações ocorreram por conta de medidas políticas e econômicas adotadas pelos governos que fomentaram a desigualdade e prejudicaram direitos sociais básicos das populações. Para o Doutor em Filosofia, Castor Bartolomé Ruiz alguns governantes se baseiam em princípios neoliberalistas mais radicais, que consideram que o Estado não deveria dar nenhum tipo de apoio ou proteção social.

Segundo o relatório da Anistia “a polarização política se intensificou na região e refletiu um sentimento generalizado de desilusão com governos e elites em todo o espectro político”. Além disso o relatório da organização destacou a impunidade no caso da morte de Marielle Franco, que completou dois anos no dia 14 de março. “Marielle era abertamente defensora dos direitos da juventude negra, das mulheres, das pessoas que vivem na pobreza, das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexual, e as vítimas da violência policial no Rio de Janeiro”.

O Observatório da América Latina conversou com Castor Bartolomé Ruiz, Doutor em Filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação de Filosofia, na Unisinos. Coordenador Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança e coordenador Grupo de Pesquisa CNPq Ética, biopolítica e alteridade. Faz parte do corpo docente de especialização em Direitos Humanos e políticas públicas da Unisinos.

A entrevista é de Thais Ramirez, jornalista formada pela Unisinos e graduanda em Marketing.

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Porque, na sua opinião, a América Latina se encontra nesse cenário de violência?

Para entendermos a complexidade do fenômeno da violência na América Latina temos que fazer memória, sempre, da sua história de violência endêmica que assolou os povos deste continente desde a conquista, passando pela escravidão, continuando pelas independências feitas como eventos militares que não instauraram verdadeiras repúblicas, mas deram continuidade a uma sucessão de caudilhismos e militarismos que nos assombram até o momento presente.

Nenhuma sociedade consegue escapar abruptamente do seu passado. No caso de América, as incipientes redemocratizações feitas no final do século XX na maioria dos países ainda carregam no seu seio as estruturas autoritárias montadas nos regimes militares e não desativadas em muitos casos, como no Brasil. Esse entulho autoritário permanece nos porões das democracias, controlando-as como se o destino de um país não correspondesse à vontade da cidadania, senão que continua atrelado à vontade de novos/velhos “salvadores de pátrias”. Esse autoritarismo enquistado como um câncer nas estruturas sociais e históricas da maioria dos países latino-americanos, é uma das principais causas de uma violência estrutural que continua a se praticar e replicar de múltiplas formas, como a repressão constante a movimentos sociais, as torturas encobertas que surgem cotidianamente nos noticiários, as licenças explícitas promovidas por muitos governantes para matar a todo aquele que tiver perfil de bandido como se isso fosse um ato legítimo de justiça, etc.

Nenhuma sociedade consegue escapar abruptamente do seu passado. No caso de América, as incipientes redemocratizações feitas no final do século XX na maioria dos países ainda carregam no seu seio as estruturas autoritárias montadas nos regimes militares e não desativadas em muitos casos, como no Brasil.

Em muitos casos, essa prática histórica da violência estrutural está sendo legitimada pela reciclagem de um discurso (fascista) que visa promover o ódio contra o diferente. O objetivo dessa estratégia e criar a figura de um inimigo social ao qual temos que combater porque está destruindo a nação. A figura do inimigo é construída de modo artificial pelas novas ideologias (fascistas) como artifício para legitimar a necessidade de defender a sociedade desses inimigos. Esse discurso de ódio é estratégico. Ele tem como objetivo político legitimar a prática de uma violência estrutural e até institucional contra aqueles que forem catalogados como inimigos da sociedade ou inimigos da pátria.

Retomando o último informe de Anistia Internacional a respeito da violência na América Latina, diz: “A desigualdade, a corrupção, a degradação meio-ambiental e a fragilidade das instituições continuam a ser uma realidade habitual em toda a região das Américas, o que para milhares de pessoas se traduz em violações cotidianas de direitos humanos” As raízes da violência em nosso continente têm uma ancestralidade que assombra nosso presente. A desigualdade extrema promovida pela injustiça estrutural reproduz geração após geração relações violentas que, mais cedo ou mais tarde, se manifestam em fenômenos de violência.

As raízes da violência em nosso continente têm uma ancestralidade que assombra nosso presente.

Como o avanço do conservadorismo e do autoritarismo impacta na vida das pessoas?

É importante destacar que muitos, talvez a maioria, do que se denominam atualmente movimentos conservadores no mundo, são muito diferentes do conservadorismo “liberal” que predominou depois da Segunda Guerra Mundial. Estes movimentos conservadores se alçam a partir da construção de um discurso de xenofobia, que parecia ter sido abolido com a vitória sobre os fascismos e os racismos. O discurso xenófobo produz a figura do outro diferente, o estrangeiro, o migrante, como uma ameaça para nosso modo de vida que devemos extirpar de nossa sociedade.

No caso de América Latina, a xenofobia contra o estrangeiro ou migrante se deslocou para a figura dos bandidos e uma difusa luta contra os corruptos, como se os corruptos fossem sempre os outros. O outro diferente é mostrado sempre como uma ameaça. De outro lado se promove a exaltação de nacionalismos ou identidades patrióticas puras, que sempre são uma ficção ideológica. A exaltação dos nacionalismos produz muitos tipos de xenofobia contra os outros que não estão incluídos nestas identidades fechadas.

Estes movimentos neoconservadores reproduzem a estratégia dos movimentos fascistas. Primeiro criam o inimigo, segundo estimulam o medo social do inimigo, terceiro promovem atos de violência contra esse inimigo como o meio legítimo de acabar com essa ameaça social e por fim se propõem a si mesmos como os salvadores da pátria, que vão extirpar esses inimigos do corpo social.

Todos sabemos as trágicas consequências dessa estratégia fascista, mas de cinquenta milhões de mortos. No caso de América Latina, o nosso passado autoritário é muito mais recente e presente que em outras partes do mundo.

Todos sabemos as trágicas consequências dessa estratégia fascista, mas de cinquenta milhões de mortos. No caso de América Latina, o nosso passado autoritário é muito mais recente e presente que em outras partes do mundo. Se pensamos que no Brasil faz pouco mais de 30 anos que restabeleceram as instituições democráticas, poderemos entender melhor por que o entulho autoritário das ditaduras latino-americanas ressurge maquiado nestes novos movimentos ultraconservadores. As suas principais bandeiras políticas nada mais são que uma reciclagem dos modelos autoritários das ditaduras militares, desde a defesa do porte de armas até o incentivo à morte preventiva de supostos bandidos.

A estratégia destes movimentos ultraconservadores é tomar as ruas e captar a maioria da opinião pública.

É importante constatar que para legitimar as atitudes autoritárias, estes movimentos conservadores necessitam um amplo apoio popular. Daí que eles estimulam o populismo e a propaganda em grande escala. Os movimentos fascistas de início do século XX souberam aproveitar muito bem os novos meios tecnológicos da época como o rádio e imprensa para promover adesão das massas. Hoje assistimos a autênticas corporações midiáticas que fabricam mensagens e vídeos quase que ilimitadamente para serem espalhados como nova propaganda de massas. Esta propaganda é sustentada com muito dinheiro não declarado, são as novas milícias digitais que através das redes sociais tentam captar adeptos, criam o ódio, promovem as mentiras como novas verdades, tudo para a causa do novo conservadorismo. A estratégia destes movimentos ultraconservadores é tomar as ruas e captar a maioria da opinião pública. Esse é o fenômeno que temos visto acontecer no Brasil desde as manifestações de 2013. Esse é o fenômeno que elegeu Jair Bolsonaro, entre outros.

De que forma as políticas neoliberais implementadas nos países da América Latina afetam o bem-estar social?

Curiosamente, os movimentos fascistas de início do século XX mantinham uma espécie de política conciliadora entre os interesses do capital e dos trabalhadores. Por isso elaboraram, por exemplo, as leis do trabalho, seguridade social, escola pública, aposentadoria, etc. Os atuais movimentos ultraconservadores, diferentemente, aderiram aos princípios do neoliberalismo mais radical, que consiste em decretar que tudo que for público é ineficiente e uma espécie de rêmora social que devemos retirar. Em compensação se faz uma apologia do privado como sendo o princípio regulador da eficiência social.

Os movimentos fascistas de início do século XX mantinham uma espécie de política conciliadora entre os interesses do capital e dos trabalhadores.

O neoliberalismo mais radical considera que o Estado não deveria dar nenhum tipo de apoio ou proteção social, que cada indivíduo deve procurar por si mesmo o que necessita. No fundo se prega uma espécie de darwinismo social que acredita que os melhores, os mais poderosos, ou os mais inescrupulosos, devem sobressair sobre os outros, como um direito natural que regula as relações sociais. Seguindo a lógica do darwinismo social, considera que a pobreza e exclusão social é responsabilidade pessoal por incompetência ou preguiça de não trabalhar o suficiente. Nessa lógica, a exclusão social é algo merecido pela irresponsabilidade ou incompetência dos indivíduos que não souberam ou não quiseram se esforçar para subir na escala social.

Esta ideologia neoliberal é amplamente ensinada na chamada Escola de Chicago, onde se formaram muitos dos atuais ministros de economia, entre eles Paulo Guedes. O objetivo final é desmantelar a dimensão social do Estado negando os direitos fundamentais como a saúde, a educação, aposentadoria, etc., considerando que estes são mercadorias que devem ser reguladas pelas relações do mercado. O objetivo político é conseguir retirar o caráter de direito público da educação, da saúde, da aposentadoria, das relações trabalhistas, etc.

As consequências de esta política ultraliberal pode ser analisada na situação atual de Chile. O governo de Pichonet foi o primeiro governo do mundo a implementar as teorias neoliberais dos economistas da Escola de Chicago, na década de 1970. Os números da macroeconomia de Chile pareciam indicar que ele era o modelo a seguir na América Latina. Contudo, os grandes protestos havidos durante o ano 2019 em Chile mostraram que esses números macroeconômicos maquiavam uma profunda injustiça social de aposentados que agora estão se dando conta que a reforma da previdência prometida pelo neoliberalismo achatou suas pensões a menos de um terço do salário mínimo na maioria dos casos. Esses números ocultavam um sofrimento quase infinito de famílias inteiras endividadas por décadas sem nunca conseguir saldar a dívida.

As pessoas não podem pegar água de um rio sem pagar. Estas são algumas das consequências para onde conduzem as chamadas reformas neoliberais.

No Chile não há ensino público gratuito, por isso os estudantes, para ir na universidade, senão conseguem bolsa, devem endividar-se no banco com um crédito que só conseguirão pagar depois de 20 anos de trabalho. O sistema de saúde é tudo privatizado, por isso quem não paga um plano particular de saúde está simplesmente exposto à morte. Inclusive a água não é considerada um bem público, senão que foi privatizada e vendida a grandes corporações multinacionais. As pessoas não podem pegar água de um rio sem pagar. Estas são algumas das consequências para onde conduzem as chamadas reformas neoliberais.

Nós vemos algumas situações se repetirem ao longo dos anos em diversos países da América Latina (políticas e reformas que priorizam elites econômicas, revolta popular, avanço do autoritarismo). Por que estes cenários acontecem e como superá-los?

Como indiquei anteriormente, América Latina tem que lidar com sua história e com o peso de uma injustiça estrutural secular e um entulho autoritário que não termina de eliminar. Em todos os casos, entendo que os cenários do século XXI são um desafio para consolidar, minimamente, as instituições democráticas. Todas as manobras autoritárias que percebemos no Brasil e outros países encontram uma espécie de resistência institucional nas frágeis democracias que temos. Seria um passo muito importante para os sistemas democráticos de América Latina conseguir resistir às novas manobras autoritárias.

Se nos próximo anos América Latina conseguir, como mínimo, solidificar os princípios da democracia formal, talvez estejamos dando alguns passos na direção de uma nova geração que não aceite a intolerância como princípio político.

Os princípios da democracia, assim como as principais instituições democráticas de América Latina, estão sendo colocadas, mais uma vez, a prova na sua capacidade de gerar um novo estilo de convivência não autoritário. Os discursos demagógicos cotidianos, tentando difamar a importância do congresso ou da justiça, para legitimar algum tipo de ato de exceção, são a verdadeira ameaça autoritária neste momento. Se nos próximo anos América Latina conseguir, como mínimo, solidificar os princípios da democracia formal, talvez estejamos dando alguns passos na direção de uma nova geração que não aceite a intolerância como princípio político.

Desde a perspectiva dos direitos sociais, percebe-se que o modo de produção modificou substancialmente as relações de trabalho em todo mundo, incluindo América Latina. Enfrentamos, por um lado, os velhos desafios sociais não resolvidos, como por exemplo a reforma agrária e a ambição desmedida do agronegócio e agro-capitalismo. De outro lado, vemos como a “uberização” das relações de trabalho também está diluindo muitos direitos trabalhistas nas novas gerações, legitimados pelas reformas legais para facilitar a perda de direitos. A perspectiva é que os novos explorados do capital deverão encontrar novas formas de organização e luta pelos direitos em novos cenários, que ocorrem cada vez mais em escala global.

Desde a perspectiva dos direitos sociais, percebe-se que o modo de produção modificou substancialmente as relações de trabalho em todo mundo, incluindo América Latina.

Quais as perspectivas futuras para os ativistas e defensores dos direitos humanos na América Latina?

A defesa dos direitos humanos sempre foi e será uma linha social limite, onde as tensões são constitutivas da própria defesa. Os direitos humanos se constituíram quase que na última fronteira da luta social e discursiva pela condição humana digna.

Se considerarmos que os princípios que sustentam os direitos humanos são a defesa da vida e dignidade humana integral, temos que considerar que os dispositivos da injustiça social se sustentam em variadas formas de exploração da vida humana. Por isso, a defesa dos direitos humanos, mais cedo ou mais tarde, termina se confrontando com uma luta de interesses sociais entre aqueles que se aproveitam e tiram vantagem da exploração humana e os explorados.

América Latina continua a ser um espaço social onde a injustiça estrutural é uma herança endêmica que sempre desemboca em violações diversas da vida humana. Por isso, a defesa dos direitos humanos continua a ser uma aposta arriscada porém inadiável.

Por que a cada 10 meses cai um presidente na América do Sul?

Esta é uma questão importante. A longa história de autoritarismos de nosso continente tem seu reflexo na fragilidade das atuais democracias. É uma ingenuidade pensar que as práticas e grupos autoritários que propiciaram as sangrentas ditaduras na segunda metade do século XX em América Latina teriam simplesmente desaparecido das sociedades e das instituições pelo simples fato de ter havido eleições democráticas e restabelecido as instituições básicas de uma democracia e do Estado de Direito. A triste realidade é que o autoritarismo continua muito ativo nas sombras e nos emaranhados do Estado e suas instituições.

A longa história de autoritarismos de nosso continente tem seu reflexo na fragilidade das atuais democracias.

No início do século XXI, houve uma sequência de governos em diversos países de América Latina cujos presidentes e apoiadores provinham de movimentos populares ou se elegeram com programas de reformas sociais profundas. Lembremos que algo semelhante ocorreu na década de 1960-1970 com os governos de Allende no Chile ou de João Goulart no Brasil. Naquela época ainda havia espaço no contexto da Guerra Fria para que um golpe de Estado militar e seu consequente governo ditatorial tivesse apoio e aceitação internacional. No século XXI, por mais que muitos grupos estão a desejar isso mesmo, não há possibilidade de ser aceito um golpe militar que derrube um governo legítimo. As resistências viriam a escala internacional e também internamente. Por este motivo temos visto eclodir uma série de chamados “golpes parlamentares”, cujo desfecho final é a destituição de um presidente legitimamente eleito.

O primeiro caso de golpe parlamentar ocorreu com o presidente Zelaya, em Honduras, 2009. Depois, na sequência, outros presidentes também foram depostos através de uso ilegítimo de procedimentos formais da justiça ou do parlamento. Foi o caso do presidente de Paraguai, Fernando Lugo, que em 2012 também foi destituído através de manobras do parlamento e justiça. Na sequência veio a presidenta Dilma Rousseff, 2016, e por último Evo Morales da Bolívia, 2019. Todos estes presidentes tinham em comum um projeto de governo com grandes reforma sociais. Isso não quer dizer que fizessem bons ou maus governos, não entramos no mérito de seu governo, mas avaliamos a violência institucional que supõe depor a um presidente através de manobras institucionais que terminam afrontando a própria constituição.

Temos visto eclodir uma série de chamados “golpes parlamentares”, cujo desfecho final é a destituição de um presidente legitimamente eleito.

A destituição da presidenta Dilma Rousseff seguiu esse modelo de “golpe parlamentar”. Utilizaram-se os mecanismos formais para legitimar uma ilegalidade, que nestes casos citados, particularmente no Brasil, ficou evidente que houve um desrespeito aos princípios do presidencialismo, que exige que um presidente/a só pode ser deposto se cometer crime de Estado. Diferente do modelo parlamentarista no qual há um presidente do governo que pode ser deposto por simples discordância da maioria parlamentar. No Brasil para conseguir a maioria absoluta se fez uma campanha de quase linchamento midiático da presidenta Dilma, e nos bastidores do parlamento ficou público que o voto de muitos deputados foi simplesmente comprado.

A afronta da constituição nestes casos de deposição de presidentes legítimos revela que as práticas autoritárias permanecem enquistadas nas instituições do Estado de direito e em muitas das pessoas que ali estão. Estamos perante um novo estilo de “golpe de Estado político” e não mais militar, como foi nas décadas passadas.

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